Affonso Romano de Sant’Anna
As agências de notícias divulgaram nesses dias que o urinol, que
Duchamp expôs em 1917, em Nova
York, foi eleita a obra mais influente do século XX, mais que outras como
a “Guernica” de Picasso. Muita gente se espantou, muita gente achou
graça, muita gente não entendeu nada. Acho o prêmio merecido e,
paradoxalmente, ele deixa Duchamp e o século XX numa incômoda situação.
Tenho dito que se poderia escrever um longo ensaio ou livro
intitulado: “Tudo o que você sempre quis saber sobre o urinol de
Duchamp e ninguém nunca lhe contou”. Essa notícia acima incita ainda
mais a que alguém enfrente essa tarefa.
Como e por que aquele urinol
chegou a ter este status em nossa cultura? Ou, o que houve com a nossa
cultura, que fez com que o urinol de Duchamp seja considerado, pelo menos
nessa pesquisa, a obra do século XX? As pessoas estão inquietas,
querendo saber como devem encarar essa notícia.
Há várias maneiras. Uma seria discutir, de uma
maneira nova e ousada, o sentido da obra de Duchamp, vendo-a a partir de
hoje, século XXI, como de alguma maneira empreendi no livro “Desconstruir Duchamp” (Editora Vieira& Lent), e não mais com
a complacente neofilia do século XX.
Outra maneira mais tópica de
penetrar no assunto, é examinar o contexto em que essa notícia apareceu,
pois o contexto é já um texto. Por exemplo, no site da UOL ela vem na seção
“arte e diversão”. Essa duplicidade é informativa.
"Desconstruir Duchamps", de Affonso Romano de Sant´Anna:
"Um livro imperdível e essencial para todo aquele que deseja entender mais sobre os descaminhos da Arte no período mais recente".
Duchamp, que foi mais chargista que pintor, melhor
humorista que pensador, gostaria disto. E talvez a notícia pudesse ser
lida de trás para frente, ao se anotar duas entidades que patrocinam essa
enquête. A primeira é a organização do Prêmio Turner, na Inglaterra,
um prêmio que tem sido caracterizado por produzir escândalos, mais do
que “obras de arte”. O que prepondera na escolha dos vitoriosos hoje
é a capacidade de chocar e produzir notícias, que difundidas aumentam
logo o preço das obras em pauta.
Não esquecer que a Inglaterra é quem
tem hoje o controle publicitário da arte contemporânea, desde que o
maior publicitário inglês Charles Saatchi instalou em Londres sua grande
galeria. Em segundo lugar, o patrocínio é (também) de um fabricante de
gim. E ele deve estar muito feliz com o fato que as agências de notícia
de todo o mundo veicularam o nome de sua marca, no que se chama de “mídia
espontânea”. Atrás dessa “mídia espontânea”, interessada
espertamente no espetáculo, no escândalo, no insólito, muitas empresas
têm patrocinado “qualquer coisa” que dê mídia.
Mas isto é apenas uma nota introdutória, e naquele livro que alguém
um dia escreverá se poderia estudar melhor a relação entre mercadoria e
arte, quantidade e qualidade, marketing e valor, dentro dessa coisa
confusa a que chamamos de pós-modernidade. Consideremos, no entanto, o
tal urinol. É inadiável que se faça a história arqueológica do urinol
de Duchamp.
Há alguns detalhes pouco conhecidos sobre esse
urinol de parede de Duchamp. Sabe-se que Duchamp intitulou essa peça de
“Fonte” e apresentou-a, de cabeça para baixo, na exposição de 1917,
em Nova York, com o pseudônimo: R. Mutt. Duchamp fazia parte da direção
daquele salão de vanguarda, mas preferiu apresentar “sua” obra sob
pseudônimo. Estava testando o próprio comitê de que fazia parte. O
regulamento dizia que não haveria júri nem censura, que qualquer um que
pagasse seis dólares poderia expor o que quisesse. Pois o urinol foi
rechaçado. Os outros organizadores do salão, mesmo sendo vanguardistas,
alegaram que aquilo não era obra de arte.
O fato é que, recusado, tendo ficado encostado em
alguma parede, alguém achou que o urinol era um urinol e jogou-o for a.
Então o urinol original desapareceu. Mas naquela recusa, Duchamp e seu
marchand viram uma excelente oportunidade de discutir os limites da arte
de nosso tempo. E o debate foi fomentado pelo próprio Duchamp e seu marchand Arensberg, que editaram um jornal
chamado, sintomaticamente, “Blind man”
(homem cego) decretando não
apenas o fim da arte “retiniana”- a pintura, mas defendendo a idéia
que com urinol desaparecido o autor “criou um novo pensamento para o
objeto”.
A proposta duchampiana era simples e provocadora: um objeto
deslocado de suas funções práticas e colocado num espaço artístico
assumia imediatamente o valor de obra de arte, pois a intencionalidade do
criador é que contava. A provinciana Nova York de l917, ávida de ser
moderna e vanguardista, pois o futurismo já acontecera em 1909 em Paris,
transformou isto numa grande celeuma, logo exportada.
Certas frases e
conceitos viraram axiomas indiscutíveis. Frases como “é arte tudo o que alguém chama de arte”
eram tão inovadoras e caíam tão bem no espírito moderno, que quem
ousasse duvidar era logo taxado de herege, ou, mais grave ainda, não-moderno,
antigo, reacionário, conservador. E diante da figura sedutora de Duchamp,
ninguém ousou fazer uma análise das suas afirmativas. Ninguém atinou,
nem estava teoricamente aparelhado para perceber uma coisa básica:
Duchamp era um signo duplo.
E como um extraordinário inovador e
provocador, só pode ser entendido plenamente se considerarmos as suas
duas faces e as suas contradições. No entanto, todo o século XX foi
gasto em ver somente a face óbvia do inovador, daquele que deu uma
sacudidela na história da arte. Mas será que Duchamp é só esse
revolucionário ou seu gesto ambicioso para ser reavaliado deve ser
enfocado de maneira teórica mais eficaz? O que a antropologia, a
sociologia, a psicanálise, a lingüística, a lógica filosófica teriam
a dizer sobre o “deslocamento metonímico”
que ele provocou? (Naquele meu citado livro abro caminhos nessas direções).
Vejamos. Embora o urinol tivesse desaparecido daquela exposição
em Nova York, a idéia prosperou, pois na “arte conceitual”, a idéia
pode ser mais importante que a coisa. Então,
surge a primeira contradição por parte de Duchamp: quem estava
contestando instituições e conceitos artísticos, sucumbiu econômica e
artisticamente ao sistema.
Ele começou a produzir cópias de seu urinol,
a assiná-las para diversos museus para inseri-las no sistema artístico
que condenara. Só em 1964 autenticou oito outras peças semelhantes,
caindo na repetição que tantas vezes condenou. O anti-artista virou
artista, a anti-arte, arte. O feitiço virou contra o feiticeiro. O
contestador sucumbiu à cultura do mercado. E, no final da década de 90,
a Tate Gallery de Londres comprou uma das cópias por quase um milhão de
libras.
Alguém poderia alegar, que poderiam comprar mais
barato, bastava ir à fábrica de urinóis, mandar escrever ali R.Mutt e
“Fountain”. Mas, paradoxalmente, os que querem dessacralizar,
ressacralizam tudo, precisam da “assinatura”, da “marca” do
artista, num movimento de fetichização, digno das mais arcaicas
sociedades.
A paradoxal sacralização do objeto dessacralizador
seria confirmada ainda pela badalada artista americana Sherrie Levine, que
produziu um urinol de bronze dourado. Ou seja, o urinol virou a Mona Lisa
da modernidade. Não estranha a eleição que ocorreu agora e que ao
premiar Duchamp cria-lhe um embaraço, porque o transforma em academia.
O ícone duchampiano teve duas conseqüências:
Em primeiro lugar, inumeráveis pessoas se sentiram
autorizadas a pegar qualquer objeto e a nomear isto como arte, sem se
darem conta que ao se julgarem originais e vanguardistas estavam apenas
refazendo algo não mais original. Como diria David Hockney com a
autoridade de ser um dos mais importantes pintores da atualidade “é
algo anti-duchampiano fazer e refazer Duchamp”. O detalhe que escapou a
Hockney é que Duchamp foi o primeiro a cair na própria armadilha.
Em segundo lugar, incontáveis artistas ficaram
presos para sempre a esse ícone, como o cão ou cobra que morde o próprio
rabo. Por exemplo, um estudante americano de arte viu jogado no lixo, lá
no Alaska, um urinol semelhante ao de Duchamp; alugou um helicóptero e
remeteu-o ao Tennessee de presente ao seu mestre Ronald Jones, que o expôs
com dois textos, contraditórios ao lado. Um, do teórico George Dickie,
dizia, espantosamente, que aquela peça “tem muitas qualidades a serem
apreciadas - a superficie brilhante, por exemplo, tem qualidades que
lembram Brancusi e Moore”. A essa alucinação teórica, contrapunha-se
um texto do próprio Duchamp ao lado:
-“Eu joguei o urinol na cara deles como desafio e
agora eles o admiram como objeto de arte por suas qualidades estéticas”.
Mas está longe de parar a viciosa história em torno daquilo que
psicanaliticamente se pode chamar de objeto traumático, do qual alguns
artistas e teóricos não conseguem se livrar ou superá-lo teoricamente.
Como uma dízima periódica, que se repete tediosamente, a imagem
do urinol fixava-se em mentes pouco dadas a um raciocínio mais pessoal e
original. Em 1993 em Nîmes (França) havia uma exposição com outra cópia
do urinol de Duchamp, e segundo Nathalie Heinich, o objeto estava tão
sacralizado que eles o limpavam e o guardavam com o mesmo carinho que se
dedica à “Guernica”. No entanto, um artista chamado Pierre Pinoncelli
desencadeou uma performance.
Ele
era pós-moderno, filhote de Duchamp. Preso a essa metáfora original,
aproximou-se do urinou de Duchamp e
jorrou ali a sua urina. Isto feito, declarou que ao urinar ali o urinol
deixava de ser de Duchamp e passava a ser dele, pois esse é o preceito da
arte conceitual, ele apropriou-se do urinol icônico.
E justificava seu
gesto com sutileza teórica: ao urinar no urinol fez com que o objeto
voltasse à sua função original. Seria isto o ápice da carreira simbólica
do urinol duchampiano. Mas ele não se satisfez com esse gesto artístico.
A seguir, já que havia se apropriado esteticamente do urinol, sendo ele
um objeto seu e não mais do governo ou do Duchamp, destruiu-o a
marteladas. Desconstruiu Duchamp ao seu modo.
Isto
virou caso de polícia e o ministro da justiça francesa entrou na questão
alegando que “houve a degradação voluntária do monumento ou objeto de
utilidade pública” no valor de 300.000 francos. Aquele artista
conceitualista, contra-argumentou que ele, como um autêntico duchampiano,
exigia que o urinol não fosse restaurado, nem fosse tratado como objeto
vandalizado, mas como nova obra de arte, que a ele agora pertencia. Enfim, nesse círculo vicioso, alegava que havia se apropriado da
apropriação.
Como se vê, é uma seqüência de atos e pensamentos prisioneiros
de uma mesma idéia, num beco sem saída. Reprodução da reprodução com
pretensão à originalidade. Pastiche do pastiche. Por essas e por outras
é que digo que enquanto não desatarmos o nó duchampiano não se sairá
do sonambulismo teórico que aprisionou a arte na modernidade. Não é
quebrando o urinol e ressacralizando-o a seguir que se desconstruirá a
falácia duchampiana, que teve sua função histórica e hoje ficou
perempta.
É decompondo suas idéias, que têm sido seguidas como dogmas e
servilmente ressacralizadas, que se abrirá outra vertente além do
exausto século XX. Algumas afirmações teóricas de Duchamp não
resistem à uma análise lógica e interdisciplinar. Duchamp,
inteligentemente, produziu sofismas, mas perfeitamente questionáveis.
Como disse Wittgenstein- “Compreendemos mal a linguagem que usamos, e
por isso de forma enganosa, vivemos a formular as mesmas perguntas. A
linguagem é a origem das confusões filosóficas”.
A melhor maneira de
descontruir Duchamp não é negar ou quebrar o seu urinol, é tomar o
seu discurso, já que ele se quer um artista conceitual que usa a
linguagem como arma, e na análise de seu discurso mostrar as suas falácias.
E isto é possível desde que tiremos a venda dos olhos, deixemos de ser
o “blind man”, que ele cultivou, e como o menino da lenda de
Andersen digamos, com argumentos teóricos, que o rei está nu.
Saiba mais sobre o vale tudo na Arte contemporânea.
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