A anatomia humana apresenta
variações entre indivíduos, segundo as idades, raças, sexo e biotipo. É
um vasto universo a ser descoberto pelo artista. Podemos esquecer o nome de
cada músculo ou região óssea, mas não devemos esquecer a realidade física
do corpo inerte ou em movimento, para representá-lo artisticamente.
A anatomia artística é uma das bases do “tripé do conhecimento artístico
figurativo” ou seja, é um dos conhecimentos básicos na formação de um
artista figurativo, ao lado do estudo das técnicas e da composição. O
pintor que não deseja realizar obras figurativas, pode escolher as
texturas, a abstração, as cores, as paisagens, como tripé para manter sua
obra em pé. Mas deverá, assim mesmo, estudar profundamente o tema que
pretende representar, para alcançar a maestria.
Observando a evolução da história da arte, compreendemos que não existe
uma linha progressiva e contínua, onde os artistas teriam evoluído na
compreensão e representação da anatomia (e também em outras matérias,
como perspectiva e técnica). Ocorreram oscilações em épocas diversas,
quando os artistas tiveram maior ou menor interesse na representação anatômica
e, suponho, conhecimento desta matéria. Para ilustrar este fato, vale
lembrar que a estética Bizantina, onde a realidade anatômica é deixada em
segundo plano, é posterior àArte
Grega e Romana, que atingiu altos níveis de compreensão e representação
do corpo humano, representados nos baixo-relevos e esculturas.
A anatomia acompanha o homem há milhares de anos; existem descrições anatômicas
em textos antigos, como no evangelho de São Lucas da Bíblia, e na Ilíada
de Homero. Dante Alighieri descreve a “anatomia do diabo” na Divina Comédia,
e Cervantes utiliza termos anatômicos em Dom Quixote. A anatomia acompanha
a civilização, desenvolvendo-se ao lado do conhecimento do corpo humano. A
Medicina surge no Egito, no período 2700 - 2200 a.C. através dos antigos médicos
e cirurgiões dos Faraós, mesclada com a magia, ocultismo e crenças em
divindades. Os corpos dos faraós eram embalsamados e suas vísceras
guardadas ao lado de seu sarcófago, para a vida futura.
Herófilo, 335 a.c -280 a.C., médico e anatomista grego da região onde se
situa atualmente a Turquia, é considerado por muitos, como sendo o
“Pai” da Anatomia. Seus escritos foram traduzidos por Galeno, porém,
boa parte deles se perdeu na destruição da biblioteca de Alexandria.
Galeno, por cerca de 201-131 a.C., realizou estudos a partir de dissecações
de animais e deixou uma das primeiras obras de estudo de Anatomia e
Fisiologia, utilizada durante centenas de anos. Foi considerado como o “Príncipe”
da Anatomia, e deixou muitos seguidores.
A dissecação humana era um tabu nas sociedades antigas e medievais até
que, no início do século XV, algumas universidades Italianas permitiram
que seus médicos de maior credibilidade e pessoas imunes ao comentários
gerais, promovessem dissecações públicas de criminosos executados,
atraindo grande público.
Durante o Renascimento, “Artista” era uma designação atribuída
somente aos seres dotados não somente de grande adestramento da mão e
conhecimentos dos materiais artísticos mas, também, de conhecimentos em
matérias diversas. Para se transformar uma criança talentosa em um grande
artista, era necessário muito estudo, adestramento da mão, do olhar e do
intelecto, trabalho e sensibilidade.
Leonardo da Vinci, nascido em 15 de abril de 1452, em Vinci, Itália, é
quem melhor se enquadra na definição renascentista de “Artista”, por
ter sido mestre em matérias tão diversas quanto matemática, botânica,
arquitetura, física, geometria, aerodinâmica, música, pintura, desenho,
anatomia e outras. Realizou estudos anatômicos, unificando o conhecimento
anatômico obtido através da dissecação ao conhecimento da representação
artística, focalizando os detalhes da forma externa do corpo humano. Em
1495, abandonou seus estudos anatômicos, para retomá-los em 1508-10,
iniciando uma nova metodologia de investigação, registrando o que via, e
depois, a função da estrutura, observada através da dissecação. Foi o
primeiro a perceber que os órgãos internos deveriam ter uma função. Da
Vinci tinha a intenção de publicar um tratado científico de anatomia e,
para isso, executou 600 folhas contendo milhares de desenhos. Durante sua
empreitada, foi acusado de sacrilégio, seqüestro e dissecação ilegal de
cadáveres, por um alemão, provavelmente enciumado. Foi impedido de
praticar atividades anatômicas pelo Papa Leo X.
Impossibilitado de continuar a trabalhar na Itália, mudou-se para a sua última
residência, o Clos-Luce, em Blois (região do Rio Loire), vivendo sob os
auspícios de François I, na França. Morreu quatro anos mais tarde e,
somente muitos anos após, seus desenhos anatômicos tornaram-se conhecidos,
colaborando com o avanço da Medicina e a Arte.
Por essa razão, até o início do século XVI, ainda não existia uma ciência
anatômica claramente definida. Vesalius (nome latino de Andreas van Wesel),
nascido em 1514-15 em Bruxelas, Bélgica, estudava Medicina na capital
francesa, e, ainda estudante, praticava dissecações públicas para um
grande número de espectadores. Fez diversas apresentações de dissecação
em Pádua, onde tornou-se chefe da cadeira de Anatomia, atraindo público de
toda a Itália. Foi nomeado médico da corte de Filipe II, na Espanha.
Apesar de suas crenças religiosas, foi acusado de heresia por teólogos e
colegas enciumados, pois atacava os erros do anatomista Galeno, que possuía
muitos discípulos e seguidores apaixonados.
A terra cedeu lugar ao sol como centro de nosso sistema, e os conhecimentos
de anatomia evoluíram, juntamente com a Medicina. No mundo moderno, novas
tecnologias colaboram para que o corpo humano seja desvendado pela pesquisa
anatômica, através de scanners e métodos de cortes em baixa temperatura,
que permitem aos estudiosos conhecer o corpo humano de maneiras, antes,
impossíveis.
O ser humano foi, pouco a pouco, se especializando e perdendo o conhecimento
universal. Passou a entender muito sobre um assunto e menos sobre todos os
outros. A inteligência se compartimentou e o sentido da palavra
“artista” se modificou.
A palavra “artista”, perde definitivamente seu status renascentista graças
à afirmação de Joseph Beuys, de que, para a arte contemporânea, todos,
sem exceção, são artistas. Cabe lembrar que este mesmo artista passa dias
enjaulado, coberto de graxa, uivando como um lobo.
Não é mais necessário conhecer diversas matérias, adquirir conhecimentos
essenciais do ofício, ou adestrar o olhar e a mão. A arte contemporânea
convive com as lacunas na representação da figura humana e com aberrações
anatômicas diversas, como corpos tubulistas e espaguetomórficos,
provenientes do desconhecimento anatômico, ou, em raras vezes, de exercício
estético.
- Para realizar obras contemporâneas, devemos aniquilar a herança cultural
dos antepassados, como desejavam críticos e formadores de opinião do final
do primeiro milênio? Em outros setores do saber, como na Anatomia, Medicina, Matemática,
Física, Química, Engenharia e tantas outras ciências, a experiência dos
antepassados contribui para a evolução do conhecimento, trazendo a herança
de parâmetros definidos e conhecimentos claros e comprovados, obtidos através
de árduas pesquisas, e através de erros e acertos. Estes conhecimentos são
completados pela pesquisa contemporânea, que não cessa de acrescentar
novas descobertas aos conhecimentos adquiridos pela herança histórica. O
que seria desses setores do conhecimento se, à cada geração, fosse necessário
redescobrir a partir do nada, de um ponto inicial que se iniciaria a partir
da negação do já adquirido? Seguramente voltaríamos à Idade da Pedra.