10/5/2008
- É verdade que alguns artistas não autorizaram a reprodução de obras em seu livro? Como você analisa isso?
R. Foi lamentável, por exemplo, que o pintor americano Cy Twombly, que reside na Europa, tivesse negado autorização para publicação de três trabalhos seus que já apareceram reproduzidos em análises de sua obra feitas por Roland Barthes. Medo de quê? Esse pintor que pertence áquela geração do Rauschemberg e Jasper Jones (que foram seus amantes). Tal censura é pouco inteligente, porque no livro vou deixar três retângulos vazios (o que reforça ainda mais o título- O enigma vazio), e remeter os leitores para os sites da internet que
expoem essas e outras obras.Alias, Cy Twombly, há cerca de um ano e meio, fez algo pouco apreciável. Uma artista cambodjeana pespegou um beijo numa de suas telas. Isto virou noticia na França, sobretudo. E ele que tem quadros sobre "beijo", na contra-corrente da pós-modernidade, processou a moça que foi obrigada à pagar indenização e a fazer trabalhos comunitários.
Outra dificuldade, depois superada, foi com o escritório que representa Marcel Duchamp. Chegaram a pedir o texto do livro para ler porque queriam saber se o livro falava mal dele. Imagine, logo ele que debochou de todo mundo, botou bigode na Mona Lisa e dizia que ela "tinha o cu quente"...
Em que momento a situação da arte se tornou uma preocupação sua, e por quê?
R. Participei dos movimentos de vanguarda nos anos 50 e 60, dei inúmeros cursos sobre a "questão da vanguarda" no séc. 20 e sempre me intrigaram os "enigmas vazios" dentro da modernidade, os placebos, o carreirismo, a arte a reboque do mercado, as teorias sem consistência e a existência de obras que se primam
por serem " in-significantes". Quando intensifiquei os estudos a respeito fiz inúmeras viagens aos museus e bibliotecas do exterior. O último grande museu que me faltava conhecer era o Hermitage, em São Petersburgo, que visitei há dois anos.
De resto, moveu-me a aprofundar esses estudos algo semelhante àquilo que dizia Hannah Arendt, filósofo judia que confessou que se não coseguisse entender a lógica do nazismo enlouqueceria. Também tive que entender a lógica do " enigma vazio " que constitui grande parte da arte de nosso tempo. Era uma questão ética e estética.
A que você atribui o encanto exercido por Marcel Duchamp sobre tantos pensadores, como Octavio Paz?
R. Estive com Octávio Paz em várias oportunidades no Brasil e no exterior. Ele chegou a publicar na sua revista "Plural" um ensaio meu-" Que fazer de Ezra Pound". Paz fazia política literária muito bem. Escrever um livro sobre Duchamp era uma senha para ser aceito na modernidade. Acontece que eu já sai da modernidade e a estou examinando com outros olhos. Por isto, deixei de lado a "critica de endosso", o pensamento subalterno. As pessoas quando estão diante de um Derrida, Foucault, Barthes, Jean Clair ou Paz ficam logo de joelhos. De
joelhos a pessoa acaba rezando em vez de fazer análise.
Numa das partes de meu livro estudo exatamente o fascinio que Duchamp exerceu e exerce sobre os incautos. Ele seduzia homens e mulheres, sobretudo ricas. Henri-Roché, de cujo romance saiu o "Jules et Jim" de Truffaut narrava feliz as relações a três de que participa Duchamp. Duchamp era um sedutor implacável. O que faço é desmontar seu repertório de artimanhas sedutoras que vão das frases feitas, às obras e à construção mitica da própria biografia. Os melhores biógrafos de Duchamp acabam aceitando que ele era um "estrategista" inclemente, na vida e no xadrês. Aquele papo de " indiferente" fazia parte de sua estratégia de sedução.
Que sentido a palavra vanguarda conserva hoje nas artes plásticas?
R. Isto já foi equacionado em dois momentos. Primeiro quando os historiadores se deram conta que era um termo militar, autoritário e que os manifestos do principio do século pareciam palavras de ordem nos quartéis. Dentro do
radicalismo do sec.20, o artista escolhia, maniqueisticamente, entre ser de vanguarda à esquerda ou á direita, tipo Maiakovsky o Marinetti. Depois a "vanguarda" acabou um" estilo de época", como o foram o simbolismo, romantismo, etc. Um fenômeno do sec. 20 que pode ser circunscrito. Quando a vanguarda conseguiu ter uma "gramática", deixou de ser vanguarda,institucionalizou-se. Por isto,o sociólogo Howard Becker, chama a arte que diz " contemporânea" de "arte institucionalista". Faz parte do sistema, foi engolida pelo sistema. E Nathalie Heinich, que infelizmente não foi ainda aqui traduzida para o português, apontou o "triplo jogo da arte contemporânea": o artista propõe a transgressão, o sistema elogia e aceita a transgressão,o artista então torna
a propor outra transgressão, que os sistema aceita sem contestar. É uma arte inócua, uma cobra que morde o próprio rabo, vitima de um pressuposto equivocado, de que toda transgressao é arte. Por esta e por outras é que já propuz que se fizesse o " museu da transgressão".
Como você interpreta o conceito do pós-modernismo na arte?
R. É um conceito cheio de mal-entendidos. Na arquitetura é uma coisa, na literatura é outra. Há quem diga que a pós-modernidade acabou nos anos 80.
Teríamos que "limpar" essas palavras primeiro. Imagine que Clement Greenberg papa da critica americana nos anos 50, chama de modernismo em pintura algo que não tem nada com o que chamamos de modernismo em nossa literatura nos anos 20.
Mesmo assim há umas constantes e invariantes que podemos depreender do que chamam pós-modernidade: fragmentação, morte do autor/morte da historia, dispersão, pastiche, fake, fraude, cópia, apropriação, simulacro,
superficialidade, obra como "commodity", etc. Para mim, no entanto, o que importa é analisar tudo isto dentro do amplo quadro da cultura, e constatar de maneira a arte de nosso tempo é "sintoma" da "anomia" em que vivemos. Só inserindo o que chamo de "in-significância" artistica contemporânea dentro do caos cultural é que entenderemos a cultura em que estamos.
Tenho dito que as artes plásticas são a parte mais enferma do sistema, por isto é exemplar para uma analise transdisciplinar e semiótica como a que faço.
Como a arte brasileira contemporânea se encaixa nas suas análises? Que artistas você pode citar como exemplos dos fenômenos que seu livro aborda?
R. Encaixa-se perfeitamente. Apenas preferi examinar exemplares fora daqui para me sentir mais à vontade e deixar os leitores fazerem suas conexões. Isto reforça o fato de que nao estou falando de "artistas", mas de "obras", de "doentes", mas de "doenças". Grande parte da arte feita no Brasil é puro reflexo do que vem de fora. Nos anos 50, como demonstra sólida bibliografia, o Departamento de Estado Norte Americano decretou o que seria a arte no Ocidente e botou Pollock, Rauschemberg e outros nas bienais e mídias. Nos anos 80 o maior publicitário inglês Charles Saachti foi o inventor desses Damien Hirst, etc.
Alguns ingenuamente alegam que a arte brasileira passou a ter um mercado no exterior e isto seria prova de sua qualidade. O fato é que criou-se uma outra lógica de mercado, de circulação transnacional de mercadoria, de globalização do produto.
No livro "O enigma vazio" ao tratar especificamente da relação arte/mercado, dou exemplos de como grandes multinacionais investem em " arte" ou de porque os novos ricos russos e chineses resolveram investir neste tipo
de "commodity".
Muitos artistas brasileiros reagem aos seus textos (e também aos de Ferreira Gullar) com verdadeiro ódio. Isso o aflige de alguma maneira? Será possível estabelecer algum tipo de diálogo entre o modelo dominante da arte e o pensamento que lhe é dissidente?
R. Esse meu livro tem vários enfoques novos. Além de ser transdiciplinar é um estudo linguistico da retórica usada pela arte conceitual.Me dispus a enfrentar a "linguagem do problema" e o "problema da linguagem", decompondo as falácias teóricas, os falsos silogismos e os paradoxos dessa arte que se quer conceitual.
Chego a dizer que os teóricos da linguagem, têm mais a dizer sobre a arte conceitual do que os criticos de carreira, se é que ainda existem e nao são uma mistura de marchands e curadores com interesses complexos. A critica e a própria arte virou um subúrbio pobre da literatura. Assim é que analiso as alucinações verbais dos criticos, essa espécie de "action writing" que tenta justificar as " in-significâncias".
O que você acha dos trabalhos de Jeff Koons e Damien Hirst, os artistas vivos mais valorizados atualmente? Como explica os valores estratosféricos que suas obras alcançam nos leilões?
R. Jeff Koons e Damien Hirst apreenderam rapidamente o código de seu tempo. O espantoso é a critica e a ensaistica terem caído na armadilha que o sistema armou. Há dois anos, estava eu na Inglaterra e o "The Guardiam" já fazia uma devastadora matéria sobre a relação entre dinheiro e arte em Damien Hirst.
Aqueles artistas exemplificam a urgência de economistas se dedicarem a analisar esse tipo mercado no qual a arte é adjetivo.Um economista tem mais a dizer sobre eles do que um critico de arte. Felizmente existem já alguns bons estudos sobre isto e no livro cito alguns.
Que caminhos você preconiza, para a arte? Um retorno a formas do passado? É possível devolver a arte os significados que teve no passado? Como?
R. Já fiz quase uma centena de conferências no Brasil e no exterior sobre isto. As pessoas estão ávidas para discutir e ficam aliviadas quando alguém apresenta argumentos desmistificam o engodo. Pois bem, é comum alguém levantar-se e perguntar: "-...então, depois disto tudo, nos diga, o que é arte, afinal?".
Sempre lhes digo que o problema de certas respostas é que elas se prendem a perguntas mal formuladas. Temos primeiro que aprender a colocar bem as perguntas, para obter respostas justas.É função do professor ensinar até a formular perguntas. Por isto insisto tanto em operaçôes epistemológicas de raciocinio. Em síntese, a questão hoje não é " o que é arte?". Temos primeiro que equacionar " o que não é arte", tirar todo o entulho que foi jogado em torno desse "fazer" e desse "conceito" para ver se no sec 21 encontramos algum caminho.
Por isto, insisto que é necessario passar a limpo o sec. 20, passar a pente fino a arte moderna e pós-moderna. Não para voltar ao passado mas para possibilitar o futuro. E há um nó que foi dado. Esse nó é Marcel Duchamp, que até hoje foi muito louvado, mas muito mal estudado, porque as pessoas sucumbiram ao seu
charme. Enquanto não desatarmos esse nó, continuaremos em 1917.
Permita-me transcrever parte de um poema do antipsiquiatra R. D. Laing, que está na epígrafe do livro:
"Eles estão jogando o jogo deles
eles estão jogando de não jogar o jogo
se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão
quebrarei as regras de seu jogo
e receberei a sua punição".
Os críticos hoje abriram mão de julgar para se tornarem meras testemunhas da obra de arte. Como e por que isso aconteceu, na sua opinião?
R. Os criticos passaram a ser sócios, acionistas, curadores, partes interessadas nessa bolsa de valores chamada arte. O sistema os enguliu. Por isto, só alguém de foram do sistema, um "estranho", um " forasteiro"(com aquele menino que disse que o rei estava nu), alguém não comprometido, com os olhos limpos e limpas as mãos para acabar com o império do " homem cego" que Duchamp perversamente criou.
Quando, sem saber o que dizer diante de meus artigos, começaram a alegar que eu era um" forasteiro", não sabem que baita elogio estavam me fazendo. O que procuro ( e trato disto na parte final do livro) é uma nova episteme, uma teoria e prática que não volte ao universo aristotétlico e newtoniano, quando se tinha
certas "certezas" nem fique refém da filosofia e estética contemporânea que faz o elogio da " certeza da incerteza".
Qual você acha que deve ser a relação entre o Estado e os artistas plásticos, se é que deve existir alguma?
R. Deste Platão que expulsam o poeta da república. E têm razão, não dá para controlar o inconsciente do artista autêntico. Nossa cultura criou algo mais perverso: institucionalizou a marginalidade, a periferia, a anti-arte, a
não-arte, enfim, a margem. Há até revistas acadêmicas com esse enganoso nome - "Margem", com pessoas que manipulam o "centro", passando por contestadores.
Estou prá lá dessas oposições dualistas fáceis. Em homenagem ao Rosa, se tivesse que estar em alguma margem, seria a "terceira margem do rio", lugar aliás da arte autêntica.
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