Leia um trecho da apresentação do livro:
“Il y a des circonstances où je vois clairement l’alliance possible et desirable de la science et de l’art, et oú le chimiste et le physicien peuvent prendre place auprès de vous et vous eclairer.”
Louis Pasteur 6/3/1865. Cientista, ex-professor da École Nationale Superieure des Beaux Arts de Paris.
Na escolha da técnica e dos materiais coloca-se em jogo a saúde e integridade física dos artistas. Conhecendo os materiais, faremos as opções para poder executar um trabalho saudável e durável.
Para ambientá-los no clima onde fui iniciado, transcrevo algumas anotações do meu caderno de estudos de técnicas de pintura, com pensamentos de Mr. Abraham Pincas, professor de Técnicas da Pintura da École Nationale Superieure des Beaux Arts de Paris e de Mr. Jean Petit, pesquisador, físico-químico do Centre National des Recherches Scientifiques da França. De fato, uma aula destes Senhores era uma oportunidade raríssima. Penso que me ensinaram mais do que eu ousaria imaginar aprender, transcendendo o ensino da arte. Por isto transcrevo a seguir algumas reflexões, que mesmo sabendo que não são capazes de reproduzir o ambiente das aulas, ao menos, nos dão uma ideia de um caminho a ser seguido. De fato, nestas aulas recebi informações que despertaram a compreensão da pintura como técnica e como reflexo da nossa cultura.
CRIAÇÃO
Criar é estar acordado, em estado de atenção. Não se trata de um estado de relaxamento. Um pouco de tensão, pequena e equilibrada, é necessária. Existe tensão do tônus muscular, necessário para manter o corpo ereto, os braços levantados, agindo de maneira gestual, intensa ou moderada, sobre o suporte, ou sobre o material plástico escolhido e empregado. Estamos repousando internamente e acordados para o mundo exterior. É um ato consciente, de despertar do espírito, espontâneo, onde o ato e o pensamento formam unidade. Não podemos criar, se temos uma infinidade de imagens interiores e ideias na cabeça. Quando criamos com satisfação, não existe esforço, tensão ou fadiga, capaz de descarregar totalmente as energias. Trata-se de um esforço que se recarrega com a satisfação e o entusiasmo gerados pela visão do nascimento de uma obra. O ato de criar está relacionado com o do amor, que tende a unificar, e contém noções de dor e prazer.
Todo impulso vital começa por um sufocamento, um abafamento, uma necessidade intensa de expressão de algo que se encontra contido. Por esta razão os regimes totalitários e baseados na injustiça são contrários à expressão. Da mesma forma que o criador e o livre-pensador incomodam, a arte que deles brota também pode incomodar.
Pintamos o que vemos, o que sentimos, o direcionamento do nosso coração. O coração é atraído pelo tema e propõe a direção aos olhos. O estímulo é dado pelo coração. Mas fazemos a fixação através dos olhos, que conduzem e corrigem as mãos. Criamos uma identificação entre o tema (o objeto a ser pintado) e a pintura, que são o sentido essencial da obra. Uma obra é a informação recebida de um objeto, passando através do “filtro” pessoal do artista, ou seja, sua maneira de ver e transmitir para a obra. Todo processo direto, fotográfico ou de computador, não conta com o filtro gestual do artista.
No momento da criação, a visão, o olfato e o tato são centralizados sobre um ato físico. Os japoneses colocavam perfumes nas tintas para uma melhor concentração.
Quando desejamos fazer uma obra, algumas questões se apresentam:
- Qual o objeto a ser pintado? Qual o meio (técnica) a ser empregado para executar a pintura? Qual a razão e o lugar dos sentidos na obra que vamos realizar? Qual a importância do campo espiritual, filosófico ou psicológico em relação ao tema?
Estas questões nos levam a obter algumas respostas: o tema será pintado com tal técnica, escolhida em função das necessidades de preservação e de sua exposição, e procuraremos abordá-lo na sua parte física (seus volumes, valores, luzes, contrastes e complementaridades) e na sua parte espiritual (a mensagem psicológica, a essência e o mistério do tema, a construção dos aspectos físicos e psicológicos dos personagens).
Criamos com o saber adquirido + saber nato + aplicação técnica. Criar significa inovar, aprender e apreender, descobrir durante a ação, evoluir, dar um passo a mais em uma direção, coincidente ou não com a direção antecedente.
A COR
A cor é puramente energia, uma vibração eletromagnética; no entanto, cada cor cria no ser humano uma ressonância espiritual. Através das cores podemos vibrar nas diversas sensações do ser humano, da alegria e excitação ao luto. “A Doutrina das Cores”, de Goethe, relata fenômenos fisiológicos observados durante pesquisas com o efeito das cores nos seres humanos. É um tratado das cores mais interessante, sob o ponto de vista humano, para os artistas do que o de Newton. Ao lado de “Il libro de l’Arte” de Ceninno Ceninni, constitui uma Bibliografia essencial para todo artista interessado na reverberação das cores no ser humano.
A LUZ
A energia se degrada quando está em desordem. Num bom quadro, a luz se organiza e se transforma. Alternando momentos de luz e sombra, o artista pode construir uma obra harmoniosa. Observar a natureza e o ser humano é, antes de tudo, observar a passagem da luz sobre os mesmos. Quando temos um empecilho na pintura, ou eliminamos a sua causa ou o efeito. Quando temos uma deficiência na estabilidade de um material em relação à luz, devemos prevenir a degradação da obra, protegendo-a da mesma. Frequentemente, aquarelas e obras contendo materiais com pouca resistência à luz, são conservadas em gavetas e expostas com luz fraca.
PINTAR
Pintar é escolher uma estética para exprimir as coisas que vivemos. A criança pinta o seu mundo, sua ingenuidade e suas fragilidades. O adulto pinta o seu prazer, seus desejos, suas fraquezas ou sua força. São níveis mentais diferentes, expressos pela pintura. Durante a evolução do cérebro, altera-se a percepção da perspectiva, os elementos se sobrepõem, na representação gráfica. Para entendermos o que é pintar, precisamos saber o que não é pintar. Na pintura, devemos ficar no ato manual. Quanto mais manual e gestual, mais humano. Pintamos com o cérebro, o coração e a mão. O coração direciona, o cérebro comanda e a mão executa. Todo órgão que não funciona no corpo anula funções cerebrais.
O ARTISTA
Todo homem pinta aquilo que lhe falta, e depois descobre uma outra lacuna. O artista é um eterno insatisfeito. Mal terminou uma obra, já quer começar outra. Transforma suas carências espirituais em carências artísticas e produz suas obras espirituais. O homem plenamente satisfeito, sem carências, é um morto-vivo. A carência impulsiona. Algo falta e, devido a isso, o homem cria para suprir esta lacuna. Os grandes artistas tocam sempre a origem, o essencial do que está presente em todos os seres humanos. A grande arte, aquela imprescindível, fala sobre o ser humano, suas questões e angústias, alegrias e desejos, daí seu reconhecimento mundial: trata-se de uma linguagem universal, onde o essencial ultrapassa as fronteiras de região e de linguagem. O artista atual e o primitivo não são diferentes na sua essência criadora.
É tempo dos pintores aprenderem a falar e a transmitir os conhecimentos, não os guardando para si. Certos artistas têm muito sentimento e pouco pensamento. Confundem sensibilidade com “sensibilite”. Quando o artista se distancia da ciência e do conhecimento, marginaliza-se por iniciativa própria.
MATERIAIS
Quais os problemas que podem ocorrer com a manipulação dos materiais artísticos? É de grande utilidade sabermos que uma planta ou pigmento tem propriedades tóxicas. A existência de raios gama, também é importante. É bom sabermos onde botamos o dedo. Devemos misturar o mínimo possível de materiais diferentes sobre o mesmo suporte. A matéria tem um princípio constante: o humano, a nuvem, a água que passa. Três quartos dos artistas querem mostrar princípios constantes, sem formas constantes. Uma obra de arte tem uma forma e um princípio constantes. A forma de uma matéria pode se modificar na sua solidez e estabilidade. É necessário que escolhamos os utensílios ideais para trabalhar, os materiais de base, onde existem valores e fatores de economia.
Estes são os meios que correspondem e devem ser adequados ao modo de se exprimir. Uma obra é formada pela presença e pela falta de elementos e, através disso, alcançamos um equilíbrio. Uma obra é composta de matéria (materiais com os quais é feita) e de intenção. Um artista sem técnica pode ter intenções por vezes claras, mas os meios que emprega não o são. A pintura pode representar o espiritual, mas continuará sempre a ser essencialmente física. No momento em que uma pintura começa a sofrer de um mal, é levada a um restaurador que cuidará da parte física da obra, e não a um crítico de arte, para que este faça um discurso filosófico, estético ou histórico sobre ela.
O CÉREBRO
O cérebro e a pessoa codificam e exprimem o espírito individualmente na pintura espiritual. O cérebro funciona segundo a regra da causa e efeito, vigiando a imaginação, que necessita de muita liberdade e de espaço. Diversos artistas, sofrendo as influências do meio em que vivem, pintam o que os incomoda, e não uma solução de poesia para o mundo. A liberdade tem suas regras; quando o espaço é muito grande, a alma não pode se exprimir. O espaço deve se casar com a liberdade de expressão. Devemos conhecer as regras dos materiais, para poder prolongá-la, ampliá-la, estendê-la. A tela pode aceitar qualquer material no momento da execução, porém, o tempo só vai aprovar, durante sua passagem, aqueles que são os mais estáveis. O resto cai, quebra, craquela, oxida, perde a cor e corre o risco de ser restaurado por uma pessoa não preparada para a tarefa. A falta de compreensão leva ao abandono. Uma obra de arte vive ou não. Podemos percebê-la através da intuição. Será que esta obra ou aquela transmitem vida? Isto pode depender também da escolha do material. A escolha de bons materiais garante qualidade física. A pintura é uma maneira de estocar espaço no tempo. Um filme é uma maneira de estocar o tempo num espaço.
ESPAÇO E TEMPO
Universo - Uni = unir, um / Verso = em direção. Unir em direção a quê? Ao infinito. A origem da memória é um momento procurado pela ciência. A memória, na pintura, é conhecida através das pinturas pre-históricas, que remontam a 34.000 anos a.C.
O espaço e o tempo possuem comprimento, largura e profundidade (magnetismo, eletricidade). O espaço é curvo. O universo é torcido, curvado pela eletricidade. A luz possui peso e se propaga no universo em elipse No corpo humano não existem retas. Mesmo os ossos mais alongados, com aparência mais retilínea, possuem uma torção, um movimento em S itálico. O tempo é uma sucessão de etapas. Em hebraico, tempo associa-se à ideia de repouso. O movimento da criação começa a partir do estado de repouso. Para pintar, é necessária a ociosidade para a criação. O tempo nos dá a noção de ritmo entre o coração e o gesto. Olhando de perto, o tempo é simplesmente uma noção. Pintar, em chinês, se associa à ideia de limite. Desenho (dessin), em sua origem do Francês antigo (dessein), se associa à ideia de desejo.
CONSCIÊNCIA
Consciência quer dizer “com ciência”. O artista consciente deve ter confiança no cientista, quando este não tem interesse econômico sobre ele, e não deve se deixar levar facilmente por todos os argumentos dos vendedores de materiais artísticos.
O branco da tela nos permite uma reflexão, desde o começo. Se a preparação não estiver completa, sofreremos a inconsciência do que seja a tela. A tela precisa de um lado livre para respirar, por isso, não a preparamos dos dois lados. O começo da consciência é de ser responsável pelo que fazemos. Um ser que esteja em desajuste, criando aquém de suas capacidades, é um infeliz. Se queremos seguir o caminho da clareza plástica, ficaremos entre dois extremos:
- O vivido por Malevich, que procurou um caminho entre o objeto e a linguagem pictural, que pudesse exprimir o absoluto, o inexprimível. Começou impressionista e na evolução de sua pintura atingiu o máximo da abstração pintando um quadrado branco, dentro de uma tela branca. Resultado: voltou ao figurativo. Chegou num estado onde não podia mais criar, devido à restrição de sua evolução pictural.
- o caminho de Duchamps, que seguiu o caminho inverso, procurando meios de expressão, criou um significado diferente do tema abordado, convenceu e seduziu, com seus argumentos de desconstrução, tantos seguidores. E parou de criar. Cansou-se de simular arte, onde esta não existia. Abandonou tudo e foi jogar xadrez e morar nas ruas de Buenos Aires.
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